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"A sentença oral e o processo eletrônico", por José Eduardo de Resende Chaves Júnior
(09/03/2010 - 19:38)

O Ministério da Justiça de Portugal anuncia uma importante reforma no processo penal de seu país, reforma que vai permitir a prolação de sentenças orais, sem redução a termo escrito, em causas de menor complexidade, nos autos do processo eletrônico.
 
Existem inúmeros estudos comprovando que os mecanismos de racionalidade e argumentação da linguagem escrita são bem diferentes da linguagem oral. A linguagem escrita é mais descritiva e a oral é mais performática. Para entender isso melhor, basta pensar no desastre que seria a encenação de um romance escrito sem a transposição para uma linguagem própria para o teatro, para uma linguagem falada.
 
Vale lembrar que o autor da peça, ao redigi-la, não esgota os recursos argumentativos e dramáticos. Um bom ator, com sua performance, complementa bem e até transcende os limites escritos da peça teatral.
 
Quando o juiz profere uma sentença em audiência, acaba, em face do princípio da escritura, tendo de transcrever para a linguagem escrita a sentença proferida oralmente. Em outras palavras, ele acaba ‘ditando’ uma sentença, em vez de 'proferi-la'. No dicionário, 'proferir' significa 'dizer em voz alta'. Sentença, etimologicamente, como se sabe, vem de 'sentir' e não de 'ditar'.
 
No processo eletrônico, a sentença pode ser captada em sua pura verbalidade oral e gestual. Assim, o processo eletrônico permite que o juiz abandone o costume de apenas ditar, para, efetivamente, passar a proferir sentenças.
 
E ao 'proferir' uma sentença pode-se lançar mão de outros recursos argumentativos que a linguagem escrita não permite. Por meio da linguagem oral é possível ser mais direto e objetivo, inclusive mais conciso. As provas podem ser exibidas, mostradas e não apenas descritas pelo juiz.
 
A oralidade permite, pois, encenar uma sentença e não apenas ditá-la ou escrevê-la. Como o arquivo eletrônico permite não só voz, como também imagem, e não apenas imagem, senão imagem-movimento (Bergson), ou seja, admite um arquivo de vídeo, pode-se lançar mão de todos os recursos de uma performance teatral-cinematográfica para proferir, para dizer em voz alta a sentença.
 
Isso pode parecer irrelevante à primeira vista, mas muda tudo. O processo é um jogo argumentativo e de estratégia. Todas as estratégias são traçadas em se considerando o meio; se mudamos o meio, da mídia papel para o meio eletrônico, mudam-se as estratégias evidentemente. É bom lembrar que o juiz – e não apenas os advogados – traça também suas estratégias argumentativas.
 
Essa mudança da sentença escrita para a sentença oral é mais profunda que pensamos. Mudamos, como dizia o papa da comunicação canadense, Marshall McLuhan, para um meio mais 'quente', o oral-eletrônico. O papel, no sentido utilizado por McLuhan, é um meio mais 'frio', ou seja, é uma mídia que fornece menos informações ao receptor.
 
Mas, ao contrário do que pregava McLuhan, o meio mais 'quente' pressupõe maior participação. Pelo menos na hipótese do processo eletrônico, ele permitirá uma maior participação das partes e advogados. O processo eletrônico tende a ser mais participativo e interativo.
 
Essa maior participação e interatividade acaba tendo reflexos profundos também na fundamentação dos julgados. Os fundamentos são, sim, condicionados também pelo ‘meio’, pela mídia em que são expressos e veiculados. Se não temos 'meios' de provar ou demonstrar os fundamentos, eles acabam ficando no vazio. Os fundamentos são indissociáveis dos meios. O 'meio é a mensagem', o meio é uma extensão do ser humano, já dizia McLuhan.
 
Essa extensão do ser humano não é neutra. Ela acaba condicionando e modificando a forma de estar no mundo e de pensar do ser humano.
 
Os ‘meios’ de transportes – que também são extensões do homem – mudaram o mundo. O homem que se deslocava apenas com os pés é muito diferente do homem que pode usar o avião. Os fundamentos não são ideias puras, essências. São conexões, são ligações entre fatos, coisas e pensamentos. Ligações são meios. Os fundamentos da cultura do papel, da escrita, da galáxia de Gutemberg (McLuhan) são diferentes dos fundamentos da era eletrônica, da cultura oral, performática e conectada.
 
Os juristas perdem muito tempo com a tentativa de desenvolver um teoria da argumentação jurídica, similar à lógica formal, uma lógica claudicante. Como nos ensinou Perelman, que, além de jurista, era lógico-matemático, com doutorado sobre o matemático Frege, na lógica jurídica o decisivo é a determinação das premissas – o fato e a norma a ser aplicada. O silogismo jurídico, a partir da determinação das premissas, é extremamente simples.
 
Precisamos desenvolver uma nova teoria da argumentação jurídica, mas de outra ordem, levando em consideração não a abstração da lógica formal, mas a concretude do ‘meio’, da mídia em que a argumentação é apresentada e desenvolvida. Abstrair a argumentação do meio é o primeiro passo para tornar tudo teórico e artificial. O filósofo do pergaminho é muito diferente do filósofo em rede.
 
O processo eletrônico vai desencadear uma revolução performática no processo judicial. Quanto mais cedo os juristas atentarem para isso, mais cedo poderão contribuir para que essa revolução se dirija para o caminho certo. Do contrário, se continuarem a achar que o computador é apenas uma máquina de escrever com mais recursos, o processo eletrônico será reduzido a mero processo escaneado e, com isso, perderemos a oportunidade histórica de dar um choque – tão prometido, quanto diferido – de efetividade ao processo judicial

José Eduardo de Resende Chaves Júnior

  Sitio publicado em 01/02/2008